28-02-2022 Segunda-feira
Por Mulheres do PSOL
Na semana em que se completam 90 anos da conquista do voto feminino, entrevistamos Fernanda Melchionna, deputada federal pelo Rio Grande do Sul. Fernanda, que está em seu primeiro mandato no Congresso, iniciou jovem na política institucional, mas carrega a bagagem trazida dos movimentos estudantis onde atuou ainda na adolescência. Gaúcha, de Alegrete, compartilha os desafios de ser uma mulher, jovem, feminista, de esquerda e socialista em meio a um cenário hegemonicamente masculino e machista. E apesar das dificuldades dispara “É preciso ter esperança na nossa capacidade de luta e auto-organização”.
Mulheres do PSOL: Neste mês de fevereiro, a conquista do voto feminino completa 90 anos. Desde então, as mulheres ampliaram muito sua participação na política, são 52,5% do eleitorado, mas ainda assim, apenas 15% dos deputados federais são mulheres. Quais são hoje os principais desafios para as mulheres ocuparem a política?
Fernanda Melchionna: A conquista do voto em 1932, comparada a outros países da América Latina não foi muito tardia. Temos países que conquistaram o direito ao voto uma década depois do Brasil. Mas o Brasil hoje é um dos lanterninhas de participação feminina nos espaços legislativos. Eu acho que isso tem a ver com essa democracia tutelada em muitos períodos de restrição de liberdades democráticas, e claro, o machismo que se reflete, entre outras coisas, também na participação feminina na política.
Os partidos que são parte dessa ideia de manutenção do status quo, e que de maneira geral só começaram a se preocupar com a participação das mulheres quando se deu a instituição das cotas, não por uma luta de emancipação das mulheres.
E do ponto de vista das mulheres, quantas vezes a gente vai em uma associação de moradores, nos grêmios estudantis, nas ruas, nas escolas, e vê que a maior parte das lideranças são mulheres, mas aí não vê essa representação nos espaços de política institucional. Então acho que tem essa dupla carga, do machismo estrutural como manutenção de um modus operandi de um regime político onde os líderes desses partidos apostam na sua própria representatividade nestes espaços de manutenção de poder.
E é por isso que nós do PSOL temos que ter orgulho dessa conquista fruto da nossa organização interna, que nos faz ser herdeiros e parte dessa onda de luta das mulheres e de suas mobilizações, e também por ter essa auto-organização interna que permite essa paridade nos espaços de poder, nas direções, e que nos faz ser a única bancada com maioria feminina.
E você vê o tema da Lei de cotas, que não fez a gente ver uma ampliação do percentual de mulheres eleitas, a gente só viu uma ampliação significativa em termos de Brasil, quando houve a reserva de recursos financeiros para as candidaturas femininas.
Mulheres do PSOL: Ainda que aumentar a participação das mulheres na política seja fundamental, não é suficiente. O ranking Elas no Congresso, da Revista Az Mina, mostra como os parlamentares da Câmara Federal atuam em relação aos direitos das mulheres. A deputada Chris Toniett (PSL-RJ) tem a menor média de pontos, o que significa que ela é a parlamentar que mais propõe projetos de lei contra os direitos das mulheres. Você está, junto da Sâmia Bomfim, Talíria Petrone e Luiza Erundina, entre os 10 primeiros do ranking, em defesa dos direitos das mulheres no Congresso. Como lidar com esta realidade?
Fernanda: Não basta ser mulher né, a gente precisa de mulheres que defendam um programa de emancipação das mulheres e de defesa dos direitos das mulheres. As deputadas bolsonaristas não nos representam, elas estão calculadas dentro dos 15% [de participação feminina no congresso], mas é preciso ter esse corte de defesa programática de mulheres que defendem mulheres.
É um fenômeno da extrema direita, e essas mulheres são expressão da defesa de um programa de restrição das liberdades democráticas e tentativas de retrocessos. São mulheres que negam o feminismo, a Cris Tonietto, por exemplo, é uma das deputadas que mais quer retroceder nos direitos do aborto legal e seguro no Brasil. A gente conseguiu barrar 500 projetos dela na Comissão de Seguridade e Família.
É um fenômeno político de uma extrema direita que precisa ser derrotada, e ela, como outras mulheres reacionárias representam esse fenômeno. E por um lado, são mulheres que defendem por exemplo, o combate a violência, que é uma pauta policlassista, e nós não queremos que nenhuma mulher seja agredida por ser mulher. Mas quando vamos debater o campo do trabalho, por outro lado, como reforma da previdência, por exemplo, votam para tirar direitos das trabalhadoras porque não têm um programa de defesa do conjunto da classe trabalhadora.
Então eu acho que o nosso desafio, evidentemente além de avançar, batalhar para combater os feminicídios, essa dimensão da violência de gênero que avança na pandemia, e ao mesmo tempo ter um programa totalizante, que possa dar unidade a uma luta fundamental e em defesa das mulheres em sua totalidade. Porque uma igualdade substancial é uma igualdade que vai na raiz dos problemas. Nós não lutamos para ter mais mulheres explorando outras mulheres.
Mulheres do PSOL: Sua trajetória como parlamentar começou ainda jovem, você assumiu seu primeiro mandato de vereadora com apenas 24 anos. Como se deu esse seu início na política e quais foram os principais desafios enfrentados?
Fernanda: Lembro que quando comecei a militar, muitas mulheres não se identificavam com o feminismo, a gente teve um momento de refluxo na década de 1990 e início de 2000. Hoje 62% das mulheres se identificam mesmo que em termos genéricos com a ideia do feminismo, e isso é um avanço enorme, evidente.
E a gente tem que aproveitar esse avanço para trazer bandeiras, para organizar essas mulheres em um programa que junte esse conjunto de combate à opressão com o combate à exploração, afinal o capitalismo se apropria da opressão estrutural sobre as mulheres para super-explorar a classe trabalhadora, sobretudo as mulheres negras.
Eu queria destacar que além da política institucional, foi no movimento estudantil que eu, como a maioria das mulheres, enfrentei aquele medo do microfone, que acho que é cultural. E eu gosto de falar sobre isso porque acho que é importante a gente vencer esses medos. Fui do movimento estudantil, fui coordenadora geral do DCE, então quando cheguei na Câmara já tinha essa experiência de falar em público.
Aí você imagina, 24 anos, socialista, vinda do movimento estudantil, do PSOL, feminista, foi um choque com o espaço de poder. Eu sofri muito lá em 2009, com tentativas de interrupção, era taxada de histérica.Quando era o Pedro Ruas [companheiro de bancada] diziam “como ele é forte”, quando era a Fernanda, “como ela é histérica”.
Chegou no ápice, no cúmulo, de um vereador da base do governo fazer um projeto para dizer como as vereadoras tinham que se vestir, e ele se referiu a mim nominalmente, por causa das minhas roupas, baby look, coisas de política, All Star. Eu estava em uma atividade na rua, com o povo atingido pela enchente, e então decidimos fazer um protesto e eu fui vestida de terno e gravata. Ele achou que eu tinha me adaptado. Foi capa de jornal e ele teve que arquivar [o projeto], mas foi uma violência simbólica contra mim.
E é isso, a gente nunca debate a roupa do homem, a gravata do homem, o cabelo do homem, a sociedade, a imprensa nunca debatem. Eu ganhei uma materiazinha “a vereadora mais mal vestida de Porto Alegre”. Aqui na Câmara, passados 13 anos disso tudo, essa violência se mantém.
Temos visto vários fenômenos nas Câmaras de vereadores, não de tirar o microfone, mas de viralizar e ter uma rede de solidariedade importante. Em Brasília, com a emergência da extrema direita, a gente tem essas práticas de interrupção com mais violência, como foi aquele neofascista que disse que a gente não ia acordar no dia seguinte na CCJ, que aí tem uma dimensão do que é a extrema direita. Não é que eu ache que tenha aumentado, mas acho que a gente tem uma força e uma fortaleza maior.
Mulheres do PSOL: A violência política tem sido uma realidade na vida de praticamente todas as parlamentares, principalmente as mulheres negras, LBTs, e do PSOL. De que modo podemos combater essas violências e garantir a proteção das mulheres que atuam e atuarão na política institucional?
Fernanda: É mais sobre o PSOL justamente porque as nossas parlamentares são mais diversas. Há uma carga de representatividade maior no sentido de representar mais o povo brasileiro. Mulheres, das mais variadas trajetórias, da Luiza Erundina à Sâmia, a gente tem mulheres negras, mulheres trans, como parlamentares, vereadoras, deputadas federais, estaduais, e claro essa partidocracia tem um elemento de violência simbólica do modus operandi do regime, de tentar interromper, desqualificar, etc.
Agora com uma emergência de uma extrema direita que é minoritária em termos sociais, mas que é violenta, não se pode desvalorizar, e que chega a casos mais graves como ameaças de morte contra as nossas companheiras que não podem ser secundarizadas.
Agora dia 14 de março fazem 4 anos do assassinato da Marielle, sem saber quem mandou matar. Uma coisa é a luta por justiça que todas nós que militamos com a Mari merecemos, sobretudo a família. Outra coisa é que com a justiça para Marielle não vai ter salvo conduto para crimes políticos, sejam crimes de ódio ou crimes de milícia.
A luta por justiça para Marielle é muito atual, da gente pensar o 14 [de março] como dia de mobilização. Tem a ver com o futuro do país. Temos que cobrar as instituições, pois o Estado brasileiro não tem feito quase nada para garantir a vida das mulheres. O partido tem que pensar também em medidas de segurança interna dos militantes, das parlamentares, mas tem que cobrar também do Estado brasileiro.
Mulheres do PSOL: Qual mensagem você deixa para as mulheres que querem participar da política assim como você?
Fernanda: Esperança, mas não esperança no vazio. Esperança na nossa capacidade de intervenção e de luta. É verdade que nós estamos enfrentando o pior momento da história, com uma extrema direita perigosa, com a pandemia, que é democrática, mas atinge de maneira desigual os países pobres. Os negros morreram mais, os trabalhadores da periferia.
A gente viu o aumento dos feminicídios enquanto a Damares e os governos estaduais e municipais, pelas políticas neoliberais, diminuíram as políticas para as mulheres. A gente tem a menor participação ativa das mulheres na economia desde a década de 1980, fruto do desemprego, dos trabalhos mais precários, com as mulheres negras demitidas. Com a crise e a pandemia, houve ainda uma sobrecarga com o trabalho doméstico.
Essa latência que a gente viveu no #EleNão, que foi a maior manifestação feminista da história contra a extrema direita, essa latência que vimos no tsunami da educação, no #ForaBolsonaro do ano passado, nas mulheres colombianas que acabam de conquistar a descriminalização do aborto, nas argentinas que fizeram o mesmo, e nas bolivianas que estiveram na linha de frente da derrota do golpe, está entre nós.
Mais do que apostar todas as fichas na eleição, embora obviamente, tenhamos que ter um programa, temos que apostar as nossas fichas na nossa capacidade de mobilização, e de auto-organização. Estamos em outros tempos, e as mulheres brasileiras também.
Em todas as pesquisas desde o início do governo, as mulheres amplamente rejeitam Bolsonaro. Nós seremos fundamentais para derrotar essa extrema direita, mas não com o retrovisor olhando para o passado, pois a gente precisa avançar nas nossas pautas, e os direitos das mulheres não são negociáveis.
Precisamos do espelho olhando para o futuro, que só vai ser de emancipação, de plenitude, se o conjunto da classe trabalhadora e das mulheres, participar ativamente de forma organizada e mobilizada.
Mulheres, se organizem, lutem, venham para o PSOL, único partido com a maioria feminina no Congresso Federal, responsabilidade das nossas militantes na base, que constroem a Setorial, nossos militantes que garantiram a participação de 50% de mulheres, que estão no movimento estudantil, social, camponês, de trabalhadores, essa diversidade de mulheres que nós temos no PSOL e que faz com que seja um partido que é parte dessa primavera feminista que segue latente.